
LABO YOUNG
Belém, PA, 1995
Labo Young é fruto da Amazônia, sol canceriano de Ana Cristina e Raimundo. Nasceu e cresceu em Icoaraci, distrito banhado pela Baia de Guajará e conhecido pela preservação da cultura Marajoara e Tapajônica. Se mudou por alguns anos para a Ilha do Mosqueiro, onde começou a desenvolver o seu trabalho, que explora diferentes mídias como fotografia, moda e som. Suas experimentações partem da ressignificação de matérias naturais e outros elementos de seu cotidiano para a criação de um mundo de possibilidades fantásticas, onde a figura e forma humana se expandem e transmutam.
entrevista por Igor Furtado, publicada em 30/07/2020



Qual a história da sua família e de que forma eles te inspiram?
A minha família vem de gerações de ribeirinhos, pescadores e agricultores que moram em ilhas não muito distantes de Belém. Ao longo dos anos alguns tiveram que vir para a capital em busca de oportunidades, enquanto outros permaneceram. Minha vó paterna nasceu na Ilha Paquetá-Açu que fica de frente para Icoaraci, de onde é meu avô e onde passaram a viver juntos. A casa deles até hoje é do lado da minha. A família da minha mãe é da Ilha de Marajó. Ela se mudou para Icoaraci ainda muito jovem, procurando por trabalho e estudo, e acabou construindo uma relação com meu pai. Quando era criança nós sempre viajávamos para Marajó no barco do meu avô materno para ir nas festas, buscar comida e não perder contato. Essas são lembranças e vivências que marcaram minha infância; as viagens, as histórias e o rio. São muitos conhecimentos que foram passados por gerações e que me afetaram e transformaram de todas as formas. Nunca consegui entrar em nenhuma faculdade pública ou particular da minha cidade. Sinto que tudo que tenho aprendido e compartilhado com o mundo vem de um lugar muito profundo, que vai além dos ensinamentos acadêmicos. Tive muita sorte de nascer num lugar e numa família onde os saberes ancestrais sempre prevaleceram acima de qualquer coisa. Isso reflete muito na maneira como tenho construído meu trabalho em termos visuais. É sobre a espontaneidade da minha memória.
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O que você mais gosta sobre a sonoridade do Pará?
A minha vida foi marcada pela ligação da minha família a música, principalmente a paraense. Acho que tive a melhor trilha sonora de todas. Lembro das festas na minha rua nos anos 2000/90. Eu era muito pequeno, mas toda aquela articulação para que o evento acontecesse já me fascinava. As reuniões em família, as mesas chegando, o caminhão de gelo, o açaízero enfeitado nos dias de São Sebastião. Além da memória afetiva, a música também tem me ensinado muita coisa. Uma delas é a importância de dizer não para as várias maneiras que o mundo branco e elitista tenta impor a gente. A música deles pode até ser boa, mas sempre vai ter uma versão Melody muito melhor. Entendo isso como uma ferramenta de escapatória ao colonialismo, um tipo de manifesto de afirmação de quem somos. As letras com os nomes dos bairros, ilhas e aparelhagens de Belém, isso tudo carrega uma força que a gente nem percebe, só sente e celebra porque é isso que mantém a gente vivo, a periferia viva.



Retrato da minha mãe, Retrato da minha avó paterna e meu pai, Retrato das minhas tias e tio; Acervo pessoal.
Quando começou seu interesse em criar outras formas de vestir e se auto retratar?
Acho que na minha adolescência, por volta dos 15 anos, quando comecei a entender melhor a minha expressão. Na verdade, sempre fui uma criança criativa, mas no começo fazia tudo escondida. Eram experimentações só para mim, com apenas o que tinha a minha volta. Não sabia ainda que carregavam potência. De alguma forma já era uma urgência de imaginar novas formas de satisfazer meus desejos. Essa essência da imaginação foi continuando até encontrar a moda e outras formas de vestir. Fui criando um mundo só meu. Com o tempo, passei a sentir que precisava mostrar para os meus amigos, que foram os primeiros que me incentivaram a compartilhar e continuar me auto retratando. Construir essas imagens era também uma forma de interagir com a minha irmã, Samya, que sempre estava participando e me ajudando a registrar o que fosse que eu inventasse. As redes sociais começaram a proporcionar uma resposta e expansão e nisso fui me jogando junto.
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De onde surgiu sua relação com a máscara?
Alguns anos atrás tive de me mudar para a Ilha de Mosqueiro e viver literalmente outra vida com a minha família. Foi bem difícil lidar com todos os acontecimentos e me manter forte. Vários problemas com minha auto estima e insegurança me abalaram muito nesse período. Foi quando voltei a essas primeiras brincadeiras de criança que ainda faziam muito sentido para mim. Nessa onda de entender e experimentar meu corpo, as máscaras vieram como um escudo para tudo que eu sentia. Lembro de momentos em que só conseguia fazer fotos usando máscaras. Talvez não tivesse noção desse sentimento na época, mas hoje percebo que possa ter sido um sintoma dessas dores. As folhas sempre foram uma cura para as feridas com as quais eu não sabia como lidar.



Como você se sente em relação a compartilhar seu trabalho, muitas das vezes feito com o próprio celular, nas redes sociais?
O celular é um acessório que tá sempre comigo e traz essa possibilidade de registrar tudo a qualquer hora. Meus registros fluem a partir dos encontros e momentos diários, então nunca senti dificuldade de ter ele como suporte. Na verdade, talvez seja mesmo a melhor ferramenta pros meus registros. Se eu pudesse ter uma câmera boa seria ótimo também, mas tenho pensado muito sobre a necessidade de afirmar a minha forma de criar e a importância dos processos. Prefiro trabalhar junto de pessoas que fazem parte da minha vida cotidiana, como família e amigos. Eles não fazem parte dessa “atmosfera artística”, mas estão sempre presentes no que compartilho. Isso me faz pensar na quantidade de vezes que já produzi visualidades voltadas para o Instagram. Hoje percebo o quanto isso é excludente. Há pessoas na minha rua mesmo que me viram crescer e não sabem nada sobre “Labo Young”. Essa projeção do absurdo e a necessidade que as redes criam para que estejamos sempre produzindo e postando, diminui nossa potência artística de uma forma cruel, nos fazendo esquecer que viver é muito mais importante do que o resultado final de uma imagem. É por isso que não costumo dar legendas ou títulos, o significado do meu trabalho é tanto para mim que muitas das vezes não cabe em palavras.
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Como tem sido o processo de começar a produzir peças que estejam para além da dimensão de construção de imagem fotográfica?
No começo desse ano tive a primeira experiência em trabalhar dessa forma. Foi bem difícil ter de criar um look pensando como segurar ele durante horas, já que o encaixe da folha requer uma certa sensibilidade. Mas pude dividir esse projeto com pessoas que foram incríveis e honestas em todo o processo. Acho que trabalhar com pessoas que trazem leveza ajuda muito, faz com que as coisas fluam sem tantas preocupações sobre a ideia de se experimentar. Usei como base as mesmas técnicas que eu já vinha usando em trabalhos anteriores. Costumo fazer as amarrações sem a utilização de material nenhum, somente a própria folha. Dessa vez precisei fazer várias pesquisas e entender como poderia trabalhar com vegetações diferentes, quais os nomes, a sensibilidade delas, se eram maleáveis ou não. Nessa experiência aprendi muito sobre styling, mesmo não me considerando um. Prefiro acreditar nas infinitas possibilidades de experimentações criativas do corpo, onde o valor não esteja apenas no produto mas também na história.
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M Magazine, 2019; Styling: Labo Young e Ib Kamara, Fotografia: Theo De Gueltzl, Modelo: Wictor de Paula
Como foram essas experiências de trabalho no sudeste?
Foi desafiador e importante ter que passar pelo processo de criar de uma forma mais mecânica, talvez a primeira que eu tenha entendido as minhas experimentações visuais como uma forma de ganhar dinheiro. Eu gosto muito de conhecer pessoas e me conectar com o desconhecido. É sempre surreal poder ter a oportunidade de trabalhar em lugares que eu nunca imaginei estar, ou que me foram negados de alguma forma. Só que continuo vendo constantemente, principalmente no sudeste, usarem de nossas potências criativas de uma forma colonizadora, invisibilizando nosso eu criativo. É como se fossemos sempre referência e tendência, mas nossos corpos continuassem não cabendo, como se não fossemos capazes de nós mesmos prestarmos o “serviço” de criar uma imagem que é nossa. São poucos que não reproduzem isso, então eu não me importo mais em alcançar esse lugar imaginado, acho que não é necessariamente sobre ocupar, mas sim fortalecer os meus e fazer pelos meus.
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Quais lugares você ainda gostaria de conhecer?
São tantos. Um dos meus maiores desejos é conhecer Salvador. Na verdade, o Nordeste inteiro. Acho que existe uma conexão muito forte entre Norte e Nordeste. Sinto uma mesma energia vindo dos artistas que acompanho de lá, parecem ser bem sensíveis às suas vivências. Só que também sinto que ainda preciso me conhecer por inteiro, ir mais fundo. Existem tantos lugares aqui mesmo no Pará e na Amazônia que sinto a necessidade de me permitir conhecer melhor. Sempre me pego imaginando o número de artistas incríveis que não fazem parte dessa atmosfera virtual. Queria poder estar mais próximo dessas pessoas.



A natureza e a religiosidade são opostos ou sinônimos para você?
Parece meio óbvio que são coisas divergentes uma da outra, mas pensando no contexto Amazônico, é difícil fazer uma separação entre religiosidade e natureza. Às 04:00 da manhã sempre vai ter um pescador pedindo a Nossa Senhora por proteção e um bom dia de pesca. O que são as pessoas se não a própria floresta? Me faz lembrar de uma conversa que tive com um amigo sobre a separação que alguns fazem entre Amazônia e população e cultura Amazônida. Quando há fortes queimadas, as redes sociais se enchem de postagens contra. Só que na maioria das vezes, quem compartilha essas denúncias são as mesmas que são discriminatórias com pessoas oriundas da periferia. Então há um hipocrisia nisso tudo. Amazônia é periferia dos centros urbanos. É a população ribeirinha, as festas de aparelhagem, o círio fluvial e o de todo segundo domingo de outubro. Nossa Senhora de Nazaré aqui é chamada de “Rainha da Amazônia”. Como conta a história, a imagem dela foi encontrada por um pescador às margens de um igarapé. É como se fosse uma entidade que tivesse nascido aqui mesmo, a partir da natureza. Apesar de todo o histórico podre, genocida e colonizador do cristianismo, acabamos transformando essa adoração em algo único que vai muito além do contexto cristão. É algo muito difícil de se explicar.
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Onde você se vê no futuro?
Em Icoaraci junto da minha família. É o lugar de onde vem toda a minha força, acho que vai além de mim. Ter trabalhado em lugares distantes me fez perceber o quão importante é estar presente. Não existe outro lugar onde me sinta mais nutrido dos saberes e intuições que me fizeram ser o que sou hoje. Pra mim não faz sentido estar fora por muito tempo, entendo que preciso voltar e nunca esquecer quem sou. O mundo tá sempre colocando a gente como pequeno, no “quarto de despejo”. Eles nem imaginam a força que esse lugar carrega. As nossas referências são outras, mais profundas e verdadeiras. São meus avós, meus amigos e principalmente minha mãe, que sempre me ensinou a enxergar uma vida de possibilidades e de riqueza nas coisas pequenas. Quando eu não tinha brinquedo, íamos pro quintal fazer boizinhos de manga e espinhos de pupunha, jogos com os caroços, bonecos de folhas. Então, é sobre não me render a gentrificação que o centro está sempre impondo. É dizer não e permanecer, dando prosseguimento a nossa cultura, as próximas gerações. Acredito que o sangue cabano ainda corre em nossos rios e veias e é dessa forma que quero o mundo me conheça, cria de uma mulher marajoara, descendente da força cabana.





Corpo Trópico, 2020; Styling: Labo Young, Fotografia: Igor Furtado, Modelo: Cassie Capeta, Produção: Junior Ferreira