
Rogay Pornôs, 2012
LA CONGA ROSA
Brasília, DF, 1992
Rafaelly Godoy, ou La Conga Rosa, é bacharel em artes visuais pela Universidade de Brasília (UnB), onde vive e trabalha. Sua fotografia discute principalmente questões relacionadas a sexualidade e gênero. Através de fotoperformances e séries documentais traz à tona o embate entre ficção x realidade. Teve sua primeira individual do duo Travas Elétricas em 2016 na Casa de Cultura da América Latina. Também é realizadora em audiovisual e parte do coletivo Cavalas.
entrevista por Igor Furtado, publicada em 29/04/2021




Pode contar sobre sua infância e a forma que surgiu seu interesse por imagens?
Sou a caçula entre cinco irmãos. Minha mãe, Alcinda, é do Goiás e meu pai, Ivo, do Ceará. Ambos migraram ainda crianças, meu pai para Santos e minha mãe para Brasília, onde nasci e cresci. Os dois foram a primeira geração da família a entrar no curso superior, o que eles prezavam muito pros filhos, minha mãe principalmente. O foco dela era que entrássemos na universidade pública. Então, se a gente tivesse indo bem na escola tava tudo certo. Sempre moramos em chácara, na região de Sobradinho e do Urubu, então brincava na rua, me metia em uns matos, bicho de pé à rodo. Eu e minhas irmãs sempre tivemos muita autonomia e liberdade. Filhas da minha mãe somos três, todas desviantes. Além de mim, travesti, tenho uma irmã sapatão e uma bissexual. Sempre rolam uns babados né, mas posso dizer, muito feliz e orgulhosa, que meus pais foram extremamente acolhedores e compreensivos. Acredito que essa visão vêm de trabalharem muitos anos na área de prevenção HIV/AIDS, um ambiente bem plural. Depois da escola, ia pro trabalho deles pra voltar pra casa no final do dia. Chegava lá, era um monte de byxa, sapatão e travesti na mesma sala. Isso me marcou muito, porque ali parecia super natural o que na rua era visto como errado. Lembro muito de uma travesti belíssima, um cabelão enorme loiro, altíssima. Eu ficava olhando fascinada com essa possibilidade, mas acabei demorando horrores para me aceitar. Na escola sempre fui tímida, muito afeminada, e bobinha que só. Era tirada horrores de viadinho e ficava quieta, depois ia pra casa me trancar no quarto. Era amiga das estranhas e das LGBTs, mas tudo enrustida na época. Como não dava conta das atividades em que tinha que me expor muito, desenhava. Mais adolescente tive a fase mangá e anime, fazia coisas nessa linha. Depois, veio a fotografia.
Como você começou a experimentar com fotografia e cinema?
Quinze anos foi o início da minha era tumblr, risos. Acho que a internet foi um lugar muito importante para descobrir minhas referências visuais. Pesquisava no google, ia fuçando sites que tinham conteúdos de fotografia. O flickr também bombava na época. Fui vendo o que me interessava, e a partir disso passei a desenvolver minha própria prática. Já fiz muita coisa cafona, mas tenho carinho porque foram importantes naquela fase, principalmente pela auto descoberta. Procurava coisas fora da escola porque era um ambiente muito hostil para mim. Fui fazer umas oficinas numa loja de revelação, bem voltadas para uma visão tradicional do fotojornalismo, com umas Pentax K1000 que eles tinham. Foi aí que começou meu rolê com analógico. Depois, entrei no curso de Artes Visuais na UnB e fui desdobrando e experimentando outras coisas, como a fotoperformance. O cinema é mais recente, comecei em 2017, trabalhando no Departamento de Arte, principalmente no figurino. Também já tinha feito uns filmes mais experimentais com a Sosha, que é uma amiga de Recife e que é uma super artista e cineasta. O cinema tem sido meu principal trabalho, pensando em acqué, mas muito dentro do mercado mesmo. Acho que a fotografia tá mais nesse lugar de pesquisa e projetos autorais, e o cinema nesse lugar “job”. Esse ano tenho vislumbrando mesclar mais as duas coisas, e olhar pro audiovisual como uma possibilidade de criação dos meus projetos também.
Você participou de vários coletivos, certo?
Sim, primeiro As Infecciosxs, uma coletiva de Recife que surgiu em 2015, a partir do encontro com Paulete Lindacelva, Caetano Costa, Sosha e Marina Pereira. Inicialmente a vontade era criar espaços de festa em que identidades dissidentes fossem acolhidas e celebradas. Surgiu de uma maneira muito despretensiosa, cobrando ingresso de R$2,00 e com entrada gratuita para pessoas trans. É uma discussão qual foi a primeira festa a instaurar o “trans free”, mas foi a Infecciosxs lá em 2015. Sempre tínhamos uma proposta audiovisual, os teasers de chamada, que vejo como videoartes. Tinha também todo um pensamento em como fazer esses eventos, quais eram as propostas e discursos de cada edição. Depois das primeiras foi tomando outras proporções, gente entrando e saindo, novas propostas, como cineclubes e debates. Da formação inicial, quem se manteve a frente e segurou o rodjan foi a Paulete. Desde o início ela quem botava pilha e foi quem deu continuidade à coletiva com outras gatas.
E os coletivos Travas Elétricas e Cavalas, pode contar um pouco mais?
As Travas Elétricas era um duo que eu tinha com Felipe Olalquiaga. A gente se conheceu na universidade e tínhamos vários interesses em comum, em termos de poética e prática artística - fotografia e performance. A gente trabalhava numa perspectiva de criar imagens que fossem contra o imaginário da dor e sofrimento vividos por pessoas sexo dissidentes. Era sobre combate e força, em contrapartida à imagem de “vítima”. Uma produção, de certa maneira, agressiva. O trabalho surgia através do improviso de figurinos e objetos, e na frente da câmera ia se desenhando a fotografia. Tivemos a oportunidade de fazer uma exposição individual na Casa de Cultura da América Latina. Já a Cavala Filmes, é uma produtora independente que abri recentemente com Izzy Vitório e Marcus Taktsuka, duas parceiras do audiovisual e de vida. Ainda estamos no processo de entender quais são as possibilidades e interesses, mas surge da vontade de produzirmos sob nossas perspectivas, afinal, é formada por uma gata trans, uma byxa nikkei e uma preta não binária. Depois da gente trabalhar em tantas equipes com discursos e imaginários que não se alinham com os nossos, nos demos conta de que talvez a maneira fosse formar nossa própria produtora. É uma tentativa de ir atrás do acqué para produzir um audiovisual que faça sentido para nós mesmas.




Travas Elétricas, 2017
Como funciona a criação de uma série sua, pensando no processo da concepção e materialização?
Não sei se consigo traçar uma forma de criação exata e que contemple todas minhas produções. Acho que cada trabalho tem sua especificidade, mas consigo ver duas vertentes. A primeira, é da fotografia como registro do cotidiano, que acontece no dia-a-dia com minhas amigas e outras pessoas-lugares-objetos que me relaciono. É um misto de documental com encenação porque pode - e normalmente existe - algum direcionamento meu com as pessoas fotografadas. Me encanto muito pelo retrato, em registrar a beleza de gatas de uma maneira que não é tão comum. Nesse tipo de produção, a concepção de uma série acontece num momento de pós, de montagem. Colocando uma fotografia junto da outra, começo a ver uma narrativa se construindo, parecido com a montagem no audiovisual. A outra vertente de trabalho que consigo ver são as fotoperformances, em que existe um pensamento prévio. Normalmente acontece de ter uma ideia bastante abstrata. Depois, pesquiso alguns termos, histórias e trabalhos nessa linha. É um fluxo de pensamento meio loloki, que inclusive se traduz na hora de executar. Normalmente frito horrores sobre o que fazer, preparo algumas coisas, mas na hora é um grande “faz como dá”. Por isso, as imagens não são tão calculadas e limpas.
Quais seus maiores prazeres e frustrações com a fotografia analógica?
Minha maior frustração definitivamente é o custo. Os rolos de filme não são baratos e ainda existe o custo de revelação e digitalização. Isso acaba limitando algumas possibilidades de trabalhos, principalmente mais comerciais ou institucionais, em que você precisa entregar um número grande de imagens finais. Um prazer que eu tenho com a fotografia analógica é o tempo que existe entre a realização e visualização da imagem, que gera uma ansiedade gostosa. É como se eu tivesse sempre recebendo um presente. Esse distanciamento também ajuda porque olho de outra maneira para as imagens, sem a euforia do momento. O fato de não ter essa resposta imediata e a limitação de poses, ajudaram muito a treinar meu olhar. Sinto que quando pego uma câmera digital, saio feito loka clicando tudo, sem o menor pudor, e no final a maioria sai tudo cagada. Com a analógica existe uma limitação que me força a pensar o que quero enquadrar.



Como as ideias de fronteira, religião e pós pornografia aparecem no seu trabalho?
Comecei a pensar sobre fronteira junto do meu processo de transição. Sobre fronteiras do corpo e como atravessar ou habitar na fronteira. Pensava nas geografias de gênero e sexualidade, e como a fronteira pode ser um lugar de liberdade - onde leis e normas estão suspensas - mas também de controle - onde a vigilância é constante. É um lugar ambíguo, e é no cruzar que existe um posicionamento radical ante às normas e convenções sociais. Cruzar a fronteira é um ato de emancipação. Reflito sobre religião em algum dos meus trabalhos, mas principalmente sobre os símbolos que nos rodeiam e vigiam. Tento me emancipar dessas violências e controle que a Igreja também tem sobre corpos marginalizados. Já a pós pornografia, está presente, mas não consigo me colocar inteiramente como parte. Algumas referências são muito importantes pra mim, mas na época que conheci essas artistas, nem conhecia o termo pós pornografia. O trabalho da Hija de Perra, da Giuseppe Campuzano, ou da Effy Mia por exemplo foram (e são) muito importantes para minha construção enquanto fotoperformer, mas confesso que nem cato tanto os discursos e textos. Acontece de ter interesses e imaginários que vão de encontro direto com essas ideias e foi através da Bruna Kury, que é a mais mais do pós pornô, que eu comecei a adentrar mais. Acho o trabalho dela mega potente e é super referência de artista pra mim.
Qual o seu próximo projeto e de que formas você ainda pretende expandir sua prática?
Já tenho outros projetos audiovisuais que devem acontecer esse ano, mas no momento estou no processo de realização do meu primeiro curta-metragem enquanto diretora. Na verdade é um curtíssimo, que deve ter em média 5 minutos. Foi o convite de uma produtora de SP, BRUTA, que me deu autonomia para apresentar um projeto, montar uma equipe e rodar do meu jeito. Escrevi o roteiro com minha amiga artista Yná Kabe Olfenza e em algumas semanas devo começar o processo de montagem. Trata essencialmente da História Trans, tanto da luta dos movimentos organizados de travestis e transexuais, quanto da história cotidiana que cada uma de nós vive. É sobre as inesquecíveis, que somos todas nós que estamos aqui para desafiar estatísticas e também sobre as que vieram antes e construíram para estarmos onde estamos.

Erro: classificação taxonómica, 2017