Repertório N.1, 2019
DAVI PONTES
São Gonçalo, RJ, 1990
Artista da dança, coreógrafo e pesquisador. Graduado em Artes pela UFF e mestrando no Programa de Pós-Graduação Estudos Contemporâneos das Artes UFF. Desde 2016 se apresenta em galerias de arte e festivais nacionais e internacionais, sobretudo com o projeto “Sem Título”, criado em Portugal no Centro Cultural de Belém e apresentado em Porto e Lisboa. Entre seus trabalhos mais recentes, destacam-se a trilogia “Repertório” em parceria com o bailarino Wallace Ferreira. Davi tem dedicado a sua prática em aprofundar o conceito de representação e do seu funcionamento a partir da ideia de arquivo contidas na produção da História. As suas peças têm origem em processos de pesquisa, informados pela sua experiência no campo das artes visuais e dança.
entrevista por Igor Furtado, publicada em 25/06/2020


Repertório N.1, Valongo Festival por Hudson Rodrigues, 2019
Como foi crescer em São Gonçalo e de que formas isso moldou o seu trabalho?
Eu nasci em 1990, no município de São João de Meriti, Rio de Janeiro. Também morei em Vicente de Carvalho e na Penha com meus avós. Minha família não é financeiramente tradicional. Meus pais sonhavam em se mudar para São Gonçalo pela possibilidade de vislumbrar uma vida longe da violência que tínhamos que enfrentar constantemente. São Gonçalo apareceu como alternativa para uma vida melhor, e definitivamente foi. Meus pais e avós compraram um terreno com as economias que haviam reunido por anos. Minha mãe trabalhando como copeira e meu avô fazendo trabalhos dentro da construção civil, construíram a nossa casa. Cresci cercado por verde, correndo pelas ruas sem asfalto, uma realidade diferente que meus pais haviam encarado. Não acredito só em formação normativa de dança onde se aprende uma determinada técnica, estuda em uma escola, faz algumas aulas disso e daquilo. Acho que tudo o que a gente vive constitui nossa formação. A violência é um tema recorrente em meus trabalhos, mas por agora, me recuso a reencenar cenas de violência. Estou interessado em pensar a violência fora do campo da representação. Fazer o gesto voltar a ser um gesto no meu corpo.
Quando começou seu interesse em criar a partir do movimento?
Nasci e cresci num ambiente de dança, vendo minha família inventando qualquer motivo para um churrasco, ouvíamos muito samba (Arlindo Cruz, Zeca Pagodinho, Jorge Aragão, Alcione…). Vô Nilo era fã incondicional de Nelson Sargento, lembro de ouvi-lo cantarolando “naquela mesa” pela casa, enquanto vó Lourdes acompanhava. Desde muito novo já sabia dançar todas as coreografias do grupo “é o tchan” e passava o dia coreografando minhas amigas. Não tinha nada que eu queria fazer além disso. Não sei dizer ao certo se foi isso que me fez querer estudar dança e viver disso. Mas, informalmente, acho que tudo aquilo que eu pude observar na minha infância, acompanhando meus pais e avós, era mesmo muito mágico. Acho que acabei querendo perseguir essas memórias, e é assim até hoje. Depois de ter dançado por anos na igreja, aos 15 anos me interessei por fazer aulas de dança contemporânea, depois fui conhecer o ballet. Em seguida, entrei para uma companhia de dança em São Gonçalo chamada Cia. Dimensões. É difícil de explicar isso num mundo racional e da ciência, mas os sonhos, os medos, os desejos, a necessidade de fabricar mundos estão presentes e fortemente ativos no momento que crio danças.

Conferência Coreográfica, 2019


Repertório N.1, registro de De Beija, 2019
Como foi o processo de criação do Repertório N.1? É mais difícil desenvolver um trabalho que está sempre se transformando?
Depois de trabalhar alguns anos sozinho senti a necessidade de voltar a trabalhar em parceria. Fui reunindo muitas ideias, mas foi também no diálogo com outros artistas, quase sempre de outras linguagens, que retomei esse desejo. No início de novembro de 2018, fui convidado pela curadora e amiga Julliana Araújo para criar um trabalho. Eu, de imediato, queria trair esse desejo de criar sozinho e ser um corpo acompanhado. Ainda nem conhecia o Wallace, mas depois de vê-lo trabalhar numa peça tive certeza que era com ele que queria dividir esse processo. Desde o começo, eu sabia que não queria fazer um trabalho para o palco. Continuei me encontrando com ele após essa apresentação e decidimos prosseguir mesmo sem qualquer expectativa de quando voltaríamos a apresentá-lo. Passávamos horas numa sala de ensaios tentando responder uma mesma pergunta: como elaborar uma dança de autodefesa? Nossos treinos no princípio eram muito físicos pois queríamos preparar um corpo que estivesse pronto para não saber, para não estar preparado, um corpo de quem luta. Não nos interessava a luta que produz a violência, a mesma que justifica/autoriza o uso da violência total, que continua sendo praticada sem prejuízo à normalidade social. Isso seria justamente atender ao desejo esperado para nossos corpos. Em um dos nossos ensaios Wallace trouxe o exemplo do corpo que se performa quando se encontra com a polícia e o corpo que se performa para fugir de uma violência na rua. Entende o que estou querendo dizer? Está aí o programa de autodefesa. Criar um corpo atento, vigilante, de possibilidade, de uma promessa que algo pode vir a acontecer, mas sem saber necessariamente o que vai acontecer. Isso tem muito a ver com a nossa sobrevivência e existência. Queríamos jogar com a incerteza, com a desordem e o provisório. Não planejar a situação seguinte, mas acreditar que ela se revelaria de alguma maneira. Isso é muito difícil. Para gente era fundamental esses princípios. Servem quase como um tropeço que faz que uma coisa se transforme em outra. Não porque foi programada, mas porque já está lá. O estado que queríamos ativar só acontecia com o aumento da temperatura do corpo. Por exemplo, para o trabalho começar tínhamos que estar suados. Existe um momento, que depois de ficar por cerca de 20 a 30 minutos repetidamente numa determinada ação, temos que decidir parar ao mesmo tempo. Sempre antes de começar havia o medo de falhar, pois era esse o comando que nos levaria para o segundo momento. Estes princípios são para que a gente esteja atento, para ser acometido por coisas ou se esbarre (quase sempre) no profundo das incertezas. Depois de reunir um material, convidamos o Bruno Reis para nos acompanhar. Ele tinha sido meu professor na universidade e também já trabalhava como dramaturgista. Ele atuou principalmente organizando nossos desejos, nos escutando, provocando outras ambições. Lemos alguns textos juntos como: “Cultura e Representação”, de Stuart Hall, “Rumo a uma redistribuição desobediente de gênero e anticolonial da violência!", de Jota Mombaça entre outros. Jota Mombaça escreve que é preciso reconhecer os modos que cada corpo elabora sua própria capacidade de autodefesa e que há muitas formas de a pensar e treinar. Penso muito sobre isso no trabalho. Não estamos criando nenhum programa, fórmula ou cartilha. A melhor coisa é perceber que a dança exige que eu aceite uma condição de eterna incerteza e impermanência.
Sem Título, 2017
Como foi a experiência de produzir o trabalho "Sem Título" na Europa?
Na primeira parte do ano de 2016 segui para um intercâmbio em Portugal. Depois de um longo processo de seleção fui aprovado num edital da universidade e consegui uma bolsa do governo para estudar no curso de Licenciatura em Teatro na Escola Superior de Música e Artes do Espetáculo. Foi um choque radical morar em Portugal. Cheguei num inverno e na época chovia muito. Fora essa adaptação climática que é a mais óbvia, teve a adaptação de estar sozinho, longe da família, dos amigos. É muito difícil ser estrangeiro. Foi muito difícil também me adaptar à escola. Na primeira semana de aula, notei que talvez seria o único corpo negro atravessando aquele espaço. Mais tarde encontrei alguns poucos alunos. Portugal me fez experienciar uma faceta do racismo que nunca havia experimentado. Eu lembro de me sentir muito observado, na rua, no supermercado, nos transportes públicos, em qualquer lugar que cruzava. Conheci uma existência traduzida pela hiper-marcação. A experiência com Portugal foi bem sofrida, mas às vezes parava para me perguntar por que insisti por tanto tempo. Foi por causa de um grande envolvimento, comprometimento, tudo o que levo para o meu trabalho hoje. Em 2017, eu retornei para Lisboa, havia sido selecionado no Programa BoxNova do Centro Cultural de Belém. Realizei um dos meus trabalhos mais importantes o “Sem Título”, que é literalmente pesado. Estava interessado em encontrar maneiras de me livrar de um corpo colonial. Era uma aposta na invisibilidade, contrariando todas as políticas de representatividade e o desejo por ser visto. Estava interessado em criar uma dança utilizando “enunciados”. Geralmente esse tipo de procedimento está associado com construção das performances. Eu pesquisava todos os dias, cinco horas por dia, mesmo em casa continuava trabalhando e lendo coisas. Pela primeira vez eu tive uma equipe. O treinamento era para compreender as estruturas e conseguir agir dentro delas. Não queria ensaiar as ações. Eu achava que naquele momento dava-se muita importância aos passos. Para mim, construir essas ações também era uma tarefa da dança. Como criar um acontecimento dentro de uma estrutura? Coreografei cada parte dessa peça. Tudo estava catalogado, ajustado e desenhado e ao mesmo tempo eu não sabia o que poderia acontecer. Eu queria trair o princípio do trabalho. Sentia muita raiva e cansaço durante a preparação e coloco muito disso em cena. Depois de alguns anos observando, penso sobre construir um lugar frágil. O momento que a dor e a ferida coexistem mesmo sem serem revelados. Compreendi que para estremecer a montagem tão bem ordenada do sujeito racial, era preciso convocar o corpo a cavar sua experiência no mundo.
Mata Leão, Morto Vivo, 2020
Como é seu processo de pesquisa?
Cada trabalho exige que eu pense de uma forma diferente. A coreografia é o dispositivo que organiza tudo que eu faço. Entendo que essa palavra não é apenas arte de descrever a dança, mas pode ser entendida para além desses paradigmas, fora do campo da dança, como por exemplo; A coreografia que define quem circula pelo centro e quem fica à margem. A coreografia que marca as fronteiras entre os países. A coreografia que demonstra para que tipo racial e social um vírus pode ser mais letal ou não. Esta transformação sinaliza a porosidade que a palavra carrega, o que aponta, para dimensão expandida da coreografia e sua capacidade de explicar o que acontece no mundo. Ultimamente estou interessado em processos provisórios, na construção de imagens, mas sem pensá-las como algo fixo. O desejo de montar e desabar estão juntos. Em pouco tempo as estratégias que montamos para fabricar escapadas perdem a sua eficácia e são facilmente absorvidas. Uma questão que me interessa é desmontar as ciladas do significado e apontar para direções onde o sentido possa escorrer. Essas movimentações podem ser perturbadoras para o público, mas não tenho qualquer impulso em provocar incômodos. Acho que meu processo surge da experiência de se colocar em jogo dentro de cada trabalho. Hoje me recolho mais, não quero engolir o mundo. Apenas desejo que ele chegue ao fim. E por isso acabo experienciando muito cada processo, justamente porque não me apresso.
Qual o próximo projeto?
Aos poucos tenho cedido ao desejo de coreografar grupos maiores, reconhecer esse movimento tem sido generoso para mim. Não tenho mais o interesse de trabalhar em companhias de dança, onde o sistema institucional desfaz o laço entre as pessoas. Mas quero dar continuidade ao meu trabalho e as parcerias que quero tanto realizar com artistas que admiro. Posso adiantar que estou trabalhando nesse sentido. Por outro lado, quero voltar a trabalhar no Repertório N.2 que estava em fase de residência antes da chegada da pandemia e com alguns compromissos, mas tivemos que adiá los. Em breve faremos nossa primeira viagem internacional com o Repertório N.1 para o FLAM Forum of Live Art Amsterdam na Holanda.
Saber Onde Pisa, 2017